O trio elétrico talvez seja o maior símbolo do carnaval de Salvador. Este ano, a grande estrela da folia baiana completa 70 anos de desfile.

Hoje, a maioria dos equipamentos tem cerca de cinco metros de altura, pesa 80 toneladas e possui capacidade para iluminar uma cidade de 50 mil habitantes. Na década de 1950, no entanto, ele não tinha toda essa potência (e potencial).

Que o trio elétrico é criação dos músicos Dodô e Osmar todo mundo sabe – ou deveria saber. O nome “trio” foi associado ao fato de que três pessoas faziam o som: a própria dupla criadora e o músico Temístocles Aragão. Já o “elétrico” surgiu da busca de querer amplificar o som dos instrumentos.

“Era a dupla elétrica, só que no conjunto entrou mais um, Temi, então ficou trio elétrico. A partir daí, o nome do conjunto passou a ser trio elétrico. Só que, depois disso, o nome pegou. Se tivessem dois, três, quatro, a coisa foi seguindo com o mesmo nome e eles tocavam em qualquer lugar com o nome de trio”, explica Armandinho Macêdo, também músico e filho de Osmar.

Armandiho e Aroldo Macêdo se apresentam na Fobica, o irmão mais velho do trio elétrico — Foto: Max Haack/Agência HaackArmandiho e Aroldo Macêdo se apresentam na Fobica, o irmão mais velho do trio elétrico — Foto: Max Haack/Agência Haack

Armandiho e Aroldo Macêdo se apresentam na Fobica, o irmão mais velho do trio elétrico — Foto: Max Haack/Agência Haack

O primeiro desfile foi na fobica, um carro aberto com um potente equipamento de som e um tipo de palco montado em um plano superior. No segundo ano, Dodô e Osmar levaram seus equipamentos para uma caminhonete.

Armandinho explica ainda que, quando a mudança foi feita, somente Dodô e Osmar passaram a tocar, por causa de problemas na amplificação de som.

“Eram só eles dois que tocavam, porque embolava o som. Não dava para colocar um terceiro, porque a amplificação saía cavaquinho e som misturado. Às vezes o pessoal pergunta: ‘Cadê o terceiro do trio?’. Mas não existem fotos e documentos mostrando o terceiro integrante em cima do trio elétrico. Então, era o trio elétrico Dodô e Osmar que estava ali”, disse Armandinho.

“Mas o povo só falava: ‘Lá vem outro trio elétrico’, então foi o povo que generalizou e passou a chamar o caminhão e todo caminhão que chegava ali eletrificado de trio elétrico” – Armandinho.

Nos anos iniciais, o trio elétrico não tinha cantor. O microfone era apenas para dar “Boa noite, meus amigos” e iniciar o desfile. A primeira pessoa a cantar no veículo foi Moraes Moreira, como lembra Armandinho.

Na década de 1950, Dodô e Osmar em cima de um caminhão já com o nome do grupo de 'Trio Elétrico'. Além dos instrumentos elétricos, havia instrumentos de percussão. Posteriormente, o nome 'Trio Elétrico' designaria o caminhão. — Foto: Família Macedo / Arquivo PessoalNa década de 1950, Dodô e Osmar em cima de um caminhão já com o nome do grupo de 'Trio Elétrico'. Além dos instrumentos elétricos, havia instrumentos de percussão. Posteriormente, o nome 'Trio Elétrico' designaria o caminhão. — Foto: Família Macedo / Arquivo Pessoal

Na década de 1950, Dodô e Osmar em cima de um caminhão já com o nome do grupo de ‘Trio Elétrico’. Além dos instrumentos elétricos, havia instrumentos de percussão. Posteriormente, o nome ‘Trio Elétrico’ designaria o caminhão. — Foto: Família Macedo / Arquivo Pessoal

“Ele foi junto com a gente para o trio. A gente o tempo todo solando [fazendo solo com o instrumento], ele pegou o microfone para cantar. Ele dava aquela cantada, mas o som tinha as cornetas aí dava aqueles apitos [microfonia], porque a amplificação não suportava. Dodô não gostava, e ele que respondia pelo som do trio. Ele sempre teve aquela coisa de som de qualidade, de tirar a distorção, de tirar a microfonia, e o microfone era o rei da microfonia com aquelas cornetas. Aí ele escondia o microfone”, conta Armandinho.

“Em uma noite inteira, Moraes cantava duas ou três vezes. As músicas começaram a fazer sucesso no carnaval, desde a canção Jubileu de Prata” – Armandinho.

Entre os momentos emocionantes que viveu no trio elétrico, Armandinho conta o que ele gostaria de viver novo.

“Encontros de trio. Desde o primeiro, que foi completamente inusitado. A gente parou na praça Castro Alves e encontrou lá os Novos Baianos, e a gente ficou tocando a noite inteira. Quando estava amanhecendo o dia, que a gente foi se despedindo, nessa época a gente já estava usando mais o microfone de voz, igual a Baby [do Brasil] e Paulinho [Boca de Cantor]”, lembra.

Trio elétrico em 1990 — Foto: DivulgaçãoTrio elétrico em 1990 — Foto: Divulgação

Trio elétrico em 1990 — Foto: Divulgação

Depois da caminhonete, o trio elétrico evoluiu para o caminhão, já em meados da década de 1970. Com o crescimento, já não havia mais problemas entre músicos e cantores: o equipamento tinha capacidade para todo mundo.

Entre os primeiros cantores de axé no trio elétrico, Ricardo Chaves lembra da sua primeira participação em cima do caminhão.

“Minha primeira experiência com o trio elétrico foi como folião. A primeira vez que eu subi no trio elétrico foi em 1981, como convidado do patrocinador do trio de uma banda que eu era e continuo fã, os Novos Baianos. Eu, como fã de Pepeu Gomes e toda a galera dos Novos Baianos, fui para o carnaval de 81 [1981] e fiquei em cima do trio durante os três dias de desfile deles. Foi a primeira vez que eu tive a sensação de estar em cima do trio elétrico. Foi marcante para caramba aquilo ali para mim”.

“Naquela época, eu não pensava em cantar em trio elétrico. Eu fazia parte de uma banda de rock e estava ali como folião e fã. Mas curtia carnaval, sempre gostei muito de carnaval. No ano seguinte, em 82 [1982], aí sim eu já fui como cantor da Banda Mel e vivi a minha primeira experiência de carnaval como profissional’ – Ricardo Chaves.

A primeira música que Ricardo Chaves cantou segue na boca dos foliões até hoje: “O chão da praça”. “É uma música famosa demais e foi muito marcante para mim e para o carnaval de todo mundo na época”, avaliou Ricardo.

Ricardo Chaves cantando no circuito Osmar, em 2019 — Foto:  Enaldo Pinto/Ag HaackRicardo Chaves cantando no circuito Osmar, em 2019 — Foto:  Enaldo Pinto/Ag Haack

Ricardo Chaves cantando no circuito Osmar, em 2019 — Foto: Enaldo Pinto/Ag Haack

A passagem de caminhão para carreta foi entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Na época, Salvador já tinha blocos de carnaval consagrados, como o Eva, Papa Léguas (atual Papa), Cheiro de Amor (atual Cheiro) e Crocodilo.

“O trio se tornou essa máquina de alegria que rodou o mundo inteiro e cresceu em tamanho. Foi ficando cada vez maior. Como tudo na vida, tem o lado bom e o lado ruim. Esse lado [o ruim] é que eu acho que a gente se afastou bastante do público. Com a altura, ficamos muito distante das pessoas. O grande barato de subir no trio elétrico, para mim, é ser trilha sonora de momentos alegres da vida das pessoas. É o que mais me contagia quando eu me intitulo cantor de trio”, considera Ricardo.

“Quem já subiu no trio elétrico sabe que são vários os momentos lindos que a gente tem. São vários encontros musicais que a gente já teve com outros colegas, mas principalmente a verdade que a gente tem de estar cantando e uma multidão acompanhando” – Ricardo Chaves.

Carnaval de Salvador atualmente — Foto: Márcio Reis/Ag HaackCarnaval de Salvador atualmente — Foto: Márcio Reis/Ag Haack

Carnaval de Salvador atualmente — Foto: Márcio Reis/Ag Haack

A contribuição cultural dos trios elétricos para o carnaval é imensurável. O doutor em Comunicação e Culturas Contemporâneas, Paulo Miguez, classifica Dodô e Osmar como gênios.

“Dois gênios, com certeza absoluta. Eu acho que é impagável a contribuição deles para a cultura baiana. Eu digo para a cultura baiana porque não é apenas para o carnaval. A chegada do trio elétrico, a criação, a invenção transforma não apenas o carnaval da Bahia, mas tem impacto em muitas outras áreas da festa. A contribuição deles dois não tem preço”.

“Romperam com a lógica que até então dominava os festejos e instituíram, acima de tudo, – o que eu acho que é a contribuição mais marcante do trio elétrico –, algo impensável pela cidade” – Paulo Miguez.

Para Miguez, o trio inaugurou um conjunto de transformações expressivas, além de romper com a ideia de que festa tem que ser palco fixo e plateia.

“Além disso, o trio elétrico inaugurou, praticamente, um gênero novo na música brasileira: a música de trio. ‘Trioeletrificando’ os frevos. O trio promoveu uma renovação interessantíssima da música carnavalesca na cena brasileira como um todo. Abriu espaço para uma coisa que, depois se transformou em um elemento de grande importância na vida da festa, que é a possibilidade que o trio abre de se transformar num grande veículo de comunicação”, pondera o doutor.

Margareth puxa trio em Salvador — Foto: Jonatas /Ag HaackMargareth puxa trio em Salvador — Foto: Jonatas /Ag Haack

Margareth puxa trio em Salvador — Foto: Jonatas /Ag Haack

A cantora Margareth Menezes diz que também considera o trio elétrico um veículo de comunicação, e vai além: de manifestação de rua.

“Eu sempre digo o seguinte: se não fosse o trio elétrico, talvez não tivéssemos esse acontecimento todo que é o carnaval. Porque a gente já tinha a música, mas o veículo de ampliação desse som foi o trio elétrico. Ele virou um instrumento de comunicação da música de rua, de manifestação de rua, que não é só da Bahia, é do Brasil e do mundo, então merecem os parabéns Dodô, Osmar e todos que, de alguma forma, também trouxeram inovação para o trio elétrico”.

Veja mais notícias do estado no G1 Bahia.

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